terça-feira, 10 de agosto de 2010

Reflexões em torno de um Museu de Artesanato e de colecções de “design” industrial

(prolegómenos para desfazer confusões)


1. Diferenças entre Museu e Exposição de colecção de objectos

A primeira característica do Museu é a sua existência material num determinado espaço e a sua permanência no tempo longo. Contrariamente à colecção particular que sofre as repercussões das flutuações da fortuna do seu possuidor, e que se pode dispersar após mudança de atitude deste ou após o seu desaparecimento, o Museu sobrevive aos seus fundadores e tem, pelo menos como princípio teórico, uma existência tranquila, livre das estreitas e curtas flutuações da política cultural adoptada por tal ou tal Poder político. Enfim, seja qual for o seu estatuto legal, o Museu é uma instituição pública e, portanto, é mais do que uma colecção.
No acto de fundação de todo o Museu existe o imperativo das autoridades públicas ou de uma comunidade. São estas, por conseguinte, que assumem, depois, as despesas da conservação dos objectos, das colecções, do enriquecimento dos fundos do Museu, do seu pessoal especializado, etc., exercendo naturalmente a tutela sobre a instituição, zelando para que ela esteja conforme o que ficou consignado no texto da Lei. Nesta ordem de ideias, as relações entre os visitantes e o Museu inserem-se numa “economia” da dádiva e nunca por nunca na do mercado. Neste sentido, o bilhete de entrada num Museu não é a contrapartida de um serviço, mas antes uma espécie de oferta do público à instituição.
Visto nesta óptica, o Museu pode ter como exemplo paradigmático o «Metropolitan Museum de Nova Iorque», quando este se dirigia ao visitante com o convite que segue: «Pague o que quiser, mas tem de pagar qualquer coisa»!


2.A dinâmica do Museu e o seu público.


Considera-se normalmente que foi sobretudo após a II Guerra Mundial que o Museu empreendeu especial atenção sobre o seu público e do seu papel junto dele. A afluência crescente de visitantes decorre de circunstâncias específicas e variadas, das quais podemos destacar a procura crescente de instrução, o gosto, os efeitos da publicidade que o próprio Museu promove numa política de divulgação, e até de algumas questões legadas à “moda”, assim como aos movimentos turísticos que alcançam proporções sem precedentes.
Nesta perspectiva, o sucesso do Museu é avaliado a partir do volume de visitas ou do número de visitantes que consegue atrair. Ernesto Veiga de Oliveira (in. Apontamentos sobre museologia-Museus etnológicos, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, Estudos de Antropologia Cultural, nº6, 1971) chama-nos a atenção para este tipo de consumo que desemboca numa concepção «desumanizada do museu», na qual os aspectos estatísticos sufocam, destroem e negam o sentido fundamental da sua função educativa, pondo-a mesmo em perigo. Na sua opinião criam-se «problemas de espaço e tempo impossíveis (...) de se resolver satisfatoriamente; e é impossível a atenção demorar-se devidamente sobre as peças; as visitas têm de ser apressadas, colectivas (...), superficiais».
Habitualmente, as estatísticas sobre o Museu correspondem quase exclusivamente ao número de entradas, descurando indicadores indispensáveis para avaliar a sua real utilização. Refiro-me especificamente à distinção entre os visitantes adultos e estudantes, nacionais e estrangeiros, nível de instrução, regularidade das visitas, etc.. O que as estatísticas do Museu nos apresentam como o volume de visitantes por ano é, na realidade, o seu número de visitas, e não uma tipificação fiável do visitante.

3.O que é o Artesanato?

O estudo das sociedades e culturas não ocidentais esteve muito tempo sob a alçada da etnografia e da etnologia, ao passo que dependeria do folclore o que persiste de arcaico e tradicional nas sociedades ocidentais. Todavia, com os ensaios de G. Balandier, C. Lévi-Strauss e P. Mercier, a acepção anglo-saxónica do termo antropologia cultural começou a impor-se de país para país. Assim, hoje a antropologia cultural cobre um domínio que vai da antropologia física à antropologia social e aos estudos propriamente culturalistas, passado pela pré-história, pela arqueologia, pela tecnologia, pelas artes e pela linguística.
Seja como for, estas múltiplas abordagens só têm sentido enquanto permitem atingir, finalmente, o homem concreto, ao mesmo tempo sujeito e objecto de cultura de uma sociedade e num meios dados. A etnologia é, nada mais nada menos do que a antropologia cultural dos nossos dias onde, de facto, uma variante pendente se pode inserir, o Artesanato: - Produção de artefactos originados por uma causa primária não controlada, experiência artística oriunda de milenar herança cultural, efectuada com o desconhecimento do experimentador dessa mesma herança, libertando, assim, do núcleo lírico existente na natureza humana, as suas possibilidades catalisadoras, enquanto formas artísticas readaptáveis ao tempo e ao espaço.
O Artesanato é constituído por produtos de múltiplas técnicas tradicionais que unem sempre, de algum modo, a preocupação prática a uma preocupação estética. A primeira pode alcançar o nível ritual e a segunda actuar numa simbólica integral. Se o funcional puro e simples ocupa muito pouco lugar, a arte pela arte é também praticamente impensável.
Inspiração e gosto pessoais não se encontram de nenhum modo excluídos, como também não os “ateliers”, grupos, “escolas” especializadas. No entanto, nas sociedades tradicionais, os criadores individuais ou colectivos permanecem sempre tributários da colectividade e da sua herança cultural.
Os problemas inerentes à obra de artesanato e à sua criação artística, constituem desde há muito uma área de reflexão. E, nesse sentido, o Artesanato é a arte elaborada ao abrigo de todo o constrangimento cultural, na ignorância ou na ignorância fingida de todo o código e na ausência de toda a formação sistemática (escola, academia, etc.,). O Artesanato é a construção da imagem que se funda, por assim dizer, na inocência do olho, na liberdade da mão, na imaginação da técnica, na “selvajaria” do “métier”.
Neste sentido, o reino do Artesanato é singular, único, as suas operações pessoais produzem modelos de imagens elaboradas em função da inspiração solitária, enquanto mensagens mais ou menos complexas, de uma herança tradicional que se propõe transmitir à comunidade social onde está inserido.

4. O que é o “design”? (termo anglo-saxónico)

“Design”, termo inglês recobrindo simultaneamente o sentido dos conceitos de desenho, esboço, criação, projecto, foi adoptado por volta dos anos 60 (do século XX) para designar o esforço criador desenvolvido no sector dos bens de consumo e de equipamento produzidos industrialmente em série. O termo “design” aplica-se geralmente a um objecto em que os factores tecnológicos e funcionais parecem transgredidos, ao nível do sensível, por terem sido submetidos a um tratamento cromático ou plástico, em função do consumo e da “sociedade de consumo”, da atracção média para consumir, de acordo com a distribuição do produto, os hábitos nacionais de consumo, os rendimentos, a estrutura etária da população consumidora, a concorrência do mercado, etc..

5. Conclusão

Na verdade, tudo o que constitui a totalidade de um objecto, considerando a sua forma final, e a operação lógica do pensamento cultural que lhe está na origem, a estrutura do “design” industrial e a do Artesanato são diametralmente opostas e, por conseguinte, nunca por nunca o mesmo design poderá ser alguma vez uma extensão “moderna” do tradicional artesanato. Por conseguinte, subalternizar o Artesanato exposto no «Centro de Artes Tradicionais» em Évora, em virtude da colonização do espaço por uma colecção de “design” industrial de particular, de valor estético (e não só) ainda não aferido por entidade independente e credível, fazer passar esta intenção pela concretização em «protocolo» lavrado especificamente para o efeito, contra a opinião pública que se levanta todos os dias, balizada por pareceres de entidades cultural e institucionalmente responsáveis, não nos parece o melhor caminho para valorizar o património da cidade, do Alentejo e da cultura portuguesa.

Joaquim Palminha Silva, publicado no semanário "a defesa" de 4 de Agosto de 2010.

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