quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O ARTESANATO, A MEMÓRIA E A FELICIDADE (1)

Por Francisco Martins Ramos In Diário do Sul 24 de Novembro de 2010
Antropólogo, Professor Emérito da Universidade de Évora


Uma certa massificação de apoios ao artesanato nacional - por vias autárquicas, empresariais e da União Europeia - já conduziu a situações caricatas de concorrência inesperada: em feiras internacionais, tapetes em ponto de Arraiolos, feitos por mãos tristes e pobres de mulheres filipinas, chinesas e brasileiras, surgem por menos de metade dos nossos preços. Parece que a moda não vai ter continuidade: as artesãs filipinas, chinesas e brasileiras precisam muito do pão para a boca, mas não possuem a tradição cultural que lhes permita a assimilação do bordado arraiolense. É um fenómeno contra a natureza das suas culturas.

A actividade artesanal, elemento essencial das sociedades pré-industriais, vê-se confrontada, nos dias que correm, com os desafios que as fantasias de uma certa pós-modernidade lhe impõem. Nestes breves apontamentos, tentarei focar aspectos importantes dessa problemática face às encruzilhadas do futuro. Antes disso, porém, tornam-se necessárias algumas considerações preliminares que nos ajudem a compreender melhor a questão em causa.

A sedimentação cultural do homem alentejano foi um processo moroso, progressivo e relativamente recente. Tão recente como o povoamento sistemático do sul do País. Para além disso, a identidade cultural do Homem transtagano está amalgamada (como Português - produto cultural), através de contributos e inputs variados como o greco-latino, o indo-europeu, o árabe e o judaico, num processo que acaba por solidificar tardiamente.

O artesão produz, possui propriedade sobre o produto do seu trabalho e sobre o seu instrumento (!!). Para além da importância destes aspectos jurídicos, outra ordem de factores é determinante para a afirmação artesanal: questões económicas, artísticas, intelectuais e culturais.

Os artefactos são objectos de vida gerados por dedos dóceis ou por mãos habilidosas e calejadas por trabalhos doutros tempos, que sabem dar forma estética e prática ao embaraço que a imaginação do artesão sabe domesticar.
A transferência do carácter utilitário da obra produzida para funções estético-decorativas não deixou também de provocar uma machadada no fluxo artesanal que passou do campo da necessidade para a área do desejo e do estético, muito condicionada economicamente pela situação do comprador.
Apesar da tardia industrialização portuguesa e da fraqueza do processo a nível da região Alentejo, há uma vintena de anos apenas as mantas de Reguengos, os pratos do Redondo e de São Pedro do Corval e os tapetes de Arraiolos tinham ultrapassado (e mal) as fronteiras da vulgaridade.

Mas o artesanato tem sobrevivido num país rural como o nosso, apesar da abundância de factores conducentes à sua morte. Somos um país de artesãos, a vários níveis. O que parece o gracejo da metáfora (que o é) tem raízes profundas na nossa periferia cultural, intelectual e tecnológica.

No Alentejo o artesanato é, ainda, uma fonte inesgotável, de acordo com a disponibilidade e riqueza dos materiais, as necessidades impostas pela vida rural (e urbana) e a criatividade dos artífices. Numa região onde a ruralidade é um valor, o Alentejo gerou a manutenção de produtos artesanais ligados ao sector primário; por isso, algumas profissões tradicionais chegaram até aos nossos dias, nomeadamente na sua vertente utilitária. Em contra-partida, a normalização industrial, o fabrico em série, a redução dos custos de produção e o desenvolvimento tecnológico acabaram por sufocar as actividades complementares da agricultura, que perderam utilidade e funcionalidade.

A situação agonística de algum artesanato é bem ilustrada pelo desabafo de um septuagenário cesteiro alentejano, que já só faz cestos “quando está triste, quando tem saudades dos filhos e quando a mulher o amola”.
Cada artefacto é uma obra-prima que legitima a mestria do artífice, de braço dado com a sua imaginação, na aventura do belo, privilegiando a função utilitária ou decorativa, aqui e além jogando com a integração tecnológica e traduzindo-se em incorporação pessoal e afirmação afectiva.

É uma realidade indesmentível que a magia artesanal se encontra, se molda, se esconde, se desenha, se tece, se afaga e se burila nas mãos e nos pensamentos dos mais velhos. Estes, que constituem, afinal, a fonte de toda a cultura tradicional, são o elo de ligação com outras gerações, não apenas para matar saudades e encher os manuais de nostalgias, mas como verdadeiros transmissores de saberes antigos, que se actualizam permanentemente e que é preciso guardar no coração da identidade alentejana.

Parafraseando muito a propósito Sommier (1984), posso concluir afirmando que o artesanato é como a felicidade – só no momento em que desaparece é que damos conta do seu valor.


Bibliografia

RAMOS, Francisco Martins
2000 “Cestaria”, “Pedra”, “Metal”, Artesanato da Região
Alentejo, Lisboa: IEFP
1998 “Artes e Ofícios”, Guia da Oferta Turística da Região de
Turismo de Évora, Évora: RTE

SOMMIER, Gilbert
1984 Presente y Futuro de las Artesanías en la Sociedad
Industrial, Madrid: Ministerio de Industria y Energia

1 comentário:

  1. A situação do cesteiro não difere de qualquer artista plástico, escultor, escritor, compositor. A necessidade da criação está primordialmente ligada a factores de recompensa psicológica mais do que a todos os outros: utilitários, religiosos, sociais, financeiros,...
    Consoante a capacidade do depósito logístico da matéria produzida, e a disponibilidade ocupacional para a realizar, assim se poderá limitar ou expandir a produção de um criador.
    Um periférico escritor português de que nos orgulhamos, artesão toda a vida, encheu uma arca com os seus papeis. Soube há pouco que da obra gigantesca, a todos os níveis que foi publicada não estará mais de 10% do que terá escrito. No caso do cesteiro não seria de todo possível tal arca a não ser que tivesse o tamanho da de Noé.
    É verdade aparente que nos mais velhos se encontre a magia do artesanato, o que está nos mais velhos é a matriz oral que não existe em mais parte alguma e é dote de uma linhagem identitária de gerações filtrada pela interpretação pessoal, vivenciada no espaço e no tempo em que é transmitida. O verdadeiro artesanato é sempre moderno, às vezes à frente das vanguardas artísticas e tão á frente que se torna seu arquétipo. Assim o percebeu um jovem chamado Pablo Ruiz em terras de França tal como por cá uns jovens estudantes de arquitectura, um tal Costa e um tal Quadros, perceberam ao ver os bonecos de uma tal senhora Rosa que sendo moleira de profissão, camponesa de formação timidamente e em jeito de desculpa por dedicar tempo à sua vocação de bonecreira dizia que era porque lhe fazia bem à pele.
    Perdoe a extensão do meu comentário, mas lido mal com partições e caixas estanques. O museu de Etnologia de Arte Moderna e de Arte Contemporânea são coisas do séc.XIX que foram toleráveis no séc. XX mas que hoje tratam da mesma coisa. A cronologia temporal e geográfica poderá idealmente aumentar o museu de Arte Antiga. Para mim é tudo arte mesmo quando a apresentação usa eufemismos como arte bruta, arte naïf, arte surrealista, arte popular, arte tribal etc.
    O artesanato não morre, regenera-se.

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