quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O ARTESANATO, A MEMÓRIA E A FELICIDADE (2)

Por Francisco Martins Ramos

O artesão alentejano (que é o que nos interessa, de momento) afirma-se embrionariamente e potencia-se no longo período medieval e tem a sua época de ouro a partir do Renascimento. Um pouco como aconteceu por toda a Europa. Os trabalhos artesanais e de manufactura doméstica, actividade acessória da agricultura, que em si mesma constitui a base do processo, condicionam o modo de produção em que assenta, quer na Antiguidade, quer na Idade Média europeia, a economia natural.
Assim, a nível económico, a actividade artesanal permitia e permite a reunião de factores de produção num mesmo agente económico independente e fomentava a pluriactividade; ao nível técnico destaca-se a possibilidade de execução pelo mesmo indivíduo de operações que integram a totalidade ou a maioria do processo produtivo; a nível artístico permite a expressão de sentimentos estéticos, de origem essencialmente popular, mas também erudita; a nível intelectual, o artefacto consubstancia e reflecte o predomínio de factores psicológicos sobre os factores mecânicos, no processo da manufactura e produção.

A situação actual da actividade artesanal é diversa: de modo geral podemos afirmar que os ofícios artesanais colaboradores ou complementares da indústria (metais, electricidade, mecânica), não enfrentarão tão cedo problemas de sobrevivência; outras tarefas artesanais encontram-se numa posição intermédia, dependendo da oscilação do poder de compra e do nível de vida das populações. Encontram-se nesta situação os artífices da área da alimentação, dos serviços, da construção e os ofícios que dependem das modas e até de posicionamentos ecológicos (os chamados neo-artesãos de extracção urbana, mas de horizontes rurais). Finalmente, existem actividades artesanais que vão fatalmente desaparecer ou que já se extinguiram silenciosamente.

É neste sentido que a musealização dos artefactos desaparecidos ou em vias de extinção desempenha um papel crucial na salvaguarda da memória colectiva, na transmissão dos saberes tradicionais às novas gerações e na compreensão do passado, recente ou distante. Os designados Museus Rurais, Museus do Artesanato, Museus Agrícolas, Museus de Aldeia, Museus Etnográficos, etc., aí estão a atestar e a legitimar as raízes locais e regionais, os estilos de vida dos quotidianos da autenticidade vivida, dolorosamente marcada, nuns casos, e eleita como referência identitária, noutros.

Entretanto, é bom não esquecer que muitas das práticas artesanais são caracterizadas por grande fragilidade e vulnerabilidade; pertencem a sectores marginais da vida económica; enfrentam dificuldades na obtenção de créditos; possuem dimensões reduzidas e, last but not the least, as necessidades às quais correspondiam muitos ofícios artesanais desapareceram ou definham. Os exemplos proliferam, nomeadamente os ligados ao sector primário e ao mundo da ruralidade: cardadores, ferreiros e ferradores, alfaiates e modistas, latoeiros, padeiras e forneiros, almocreves, cesteiras, taberneiros, amola-tesouras, carreiros, bordadeiras, sapateiros, abegões, funileiros, chocalheiros, cadeireiros, etc.

É certo que a procura das raízes artesanais e as inúmeras iniciativas em acção procuram camuflar suavemente situações de desemprego. Mas ao mesmo tempo, e acima de tudo, a solução artesanal é, justamente, uma procura do tempo perdido e um regresso às origens. Num mundo de mudanças tecnológicas crescentes, num universo de velocidades, stress e ritmo acelerado, o recurso à obra artesanal é o retomo do homem às formas mais puras e naturais da estética popular, é o encantamento das coisas simples e utilitárias, é o prazer da ligação do artista com o produto do seu trabalho, que se pode sintetizar na expressão "o artefacto é obra do artífice". Num mundo de mudanças também sociais, o recurso à obra artesanal é o retorno do Homem às formas mais singelas de arte, é a procura da autenticidade perdida, é a aventura da descoberta sentimental da cumplicidade do artesão com o produto do seu trabalho. A globalização, a que gera uniformidades, provoca certamente a homogeneidade cultural que desejamos evitar, salvaguardando aquilo com que nos identificamos há gerações.

Bibliografia
RAMOS, Francisco Martins
2007 Breviário Alentejano, Vale de Cambra: Caleidoscópio

SOMMIER, Gilbert
1984 Presente y Futuro de las Artesanías en la Sociedad Industrial, Madrid:
Ministerio de Industria y Energia

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