O caso do protocolo entre Câmara de Évora, Turismo do Alentejo e Colecionador Paulo Parra
I – Vivemos numa época em que o fenómeno irreversível da globalização, sob todos os seus múltiplos aspectos, virtudes e pecados, apela aos cidadãos mais conscientes que reflictam sobre as suas raízes como seres reais deste universo, ao mesmo tempo tão igual e tão diferente nos seus valores, nos seus princípios, nas suas crenças, nas suas línguas, na sua forma de estar e sentir, nas suas culturas. Talvez nunca como agora se sentiu tanto a necessidade de as comunidades, principalmente as regionais e locais, afirmarem, defenderem, promoverem e divulgarem as marcas identitárias que as distinguem como comunidades diferentes de outras, nem melhores, nem piores, mas, simplesmente, diferentes. De entre essas especificidades e diferenças, a mais importante e distintiva é a sua matriz cultural, que se afirma nas manifestações materiais e imateriais que, de geração em geração, vão sendo transmitidas. É todo um património de vivências e experiências feito que, não sendo de ninguém em particular, a todos pertence e a todos incumbe defender e dar a conhecer. Tal património é, amiúde, mal compreendido e menosprezado pelos iluminados defensores de que cultura é só a erudita. É um património vasto e diversificado que vai desde a língua, as festas, os contos, a música, as relações sociais, a gastronomia, a arte popular e um sem número de outras marcas.
Nas últimas três décadas, instituições públicas como os municípios e freguesias, ou privadas, como associações culturais, irmandades, grupos de amigos, confrarias, etc., têm testemunhado, por palavras e por actos, a importância da salvaguarda e da divulgação das expressões da nossa cultura popular, editando ou subsidiando livros, organizando mostras, criando “museus” e núcleos museológicos, promovendo concursos gastronómicos, recreações históricas e todo um manancial de realizações que têm em comum atingir aqueles objectivos. Subsidiariamente, tais acções constituem igualmente uma mais valia para um tecido económico muito débil, atraindo visitantes e dinamizando algumas micro e pequenas empresas. Igualmente importante é a perspectiva social, uma vez que se dignifica e reconhece o valor de muitas tarefas e profissões.
O artesão não é apenas um artífice mas também um artista. Um artista que concebe, que desenha, que, face à necessidade de atingir uma qualquer funcionalidade, lhe é capaz de dar resposta, criando um objecto ao qual confere um sentido prático e, igualmente, um sentido estético. É no artesão que se conjugam as capacidades artísticas e manufactureiras. Nele se concentram o engenho, a destreza e a experiência. Esta é-lhe dada por séculos de saber acumulado, ao qual ele acrescenta a sua própria criatividade. Mas mais, para além das respostas às necessidades do quotidiano, o artesão cria pelo puro prazer que lhe dá o acto de criar. Os materiais com que trabalha são simples e disponíveis no seu meio envolvente. As obras que produz são maioritariamente anónimas se bem que, muitas, identificáveis pelas suas características particulares.
Desde sempre, o artesanato e a arte popular têm suscitado o interesse (e, em muitas ocasiões, a protecção) dos poderes públicos. Politicas levadas a cabo nas áreas do trabalho e do emprego pretenderam defendê-lo, dignificá-lo e dar-lhe um sentido mais vincadamente económico e social. Nalguns casos, criaram-se estruturas estatais específicas para o seu enquadramento e acompanhamento. Promoveram-se exposições, editaram-se livros, catálogos e, instituições de prestígio como a Fundação Calouste Gulbenkian, apoiaram e fomentaram o escoamento da produção artesanal (AIP/FIL). A produção artesanal está presente um pouco por todo o mundo nas Casas de Portugal, em vários países onde a diáspora portuguesa chegou. Uma grande exposição do artesanato alentejano esteve presente, vários meses, no ECTARC- Centro Europeu das Culturas Tradicionais Regionais, tendo, posteriormente, sido mostrada em Londres e em França.
É, do meu ponto de vista, absolutamente inquestionável a importância do artesanato como expressão de arte popular na matriz cultural do Alentejo. Também julgo que, numa visão mais economicista, a arte popular/artesanato é igualmente um produto turístico que, associado com outros – gastronomia e vinhos, produtos alimentares de qualidade, paisagens, património arquitectónico – contribui para potenciar o grau de atractividade de uma região. Os visitantes procuram, cada vez mais, aquilo que é diferente, específico e próprio da região ou local e que só aí o podem encontrar com autenticidade e no enquadramento global das suas interligações.
Estas considerações pareceram-me necessárias para situar o caso particular do artesanato na sua expressão regional e para pôr em evidência a sua importância, quer como marca cultural, quer como actividade económica e socialmente relevante.
II – O interesse em dispor de uma mostra da arte popular alentejana a título permanente, em instalações dignas e apropriadas, remonta a finais da década de 50 quando surgiu a ideia de criar um núcleo etnográfico no Museu de Évora. Por razões que não aprofundei, tal ideia foi abandonada a favor da criação do Museu do Artesanato Regional do Distrito de Évora, a cargo e sob a tutela da antiga Junta Distrital, o qual foi inaugurado em 1962. Com a queda do regime em 1974 e a criação das novas estruturas do poder local, o Museu, desde o início alojado no edifício do antigo celeiro comum, passou, em 1991, depois de um atribulado e demorado processo de devolução, para a tutela da Assembleia Distrital de Évora, à qual pertence o acervo, sendo esta igualmente responsável pela sua guarda e gestão. A Assembleia Distrital, procurando um parceiro que assegurasse, de forma estável, a gestão e mostra daquele património, encontrou na então Região de Turismo de Évora, o interesse e a disponibilidade para o fazer, tendo essa parceria sido devidamente formalizada. Para criar as condições necessárias à guarda e exposição das peças e à sua gestão global, nomeadamente nos âmbitos da museografia, da conservação e da segurança, tornava-se necessário reabilitar e adaptar o edifício, tendo-se recorrido ao financiamento com apoios comunitários, no âmbito do III QCA. Tal projecto foi aprovado e totalmente executado. Finalmente, em 2007, o antigo Museu do Artesanato, redenominado Centro de Artes Tradicionais, abriu à fruição do público, nas condições que todos podemos apreciar e que, a meu ver, são excelentes. Às peças do próprio acervo do Museu juntaram-se outras, de coleccionadores particulares, que as cederam por acordo protocolar firmado com a Região de Turismo de Évora.
Simplificadamente, é este o enquadramento e o percurso do actual Centro de Artes Tradicionais – ex-Museu do Artesanato.
III – A reestruturação institucional do sector turístico em Portugal levou à extinção das Regiões de Turismo e à criação das Entidades de Turismo tendo, para o Alentejo, sido criada a Entidade de Turismo do Alentejo (TA). No que se refere à estrutura da Assembleia Distrital não tenho conhecimento de qualquer modificação, com excepção da sua composição política. É hábito corrente que as instituições “herdeiras” respeitem e assumam os compromissos firmados pelas que suas antecessoras, salvo circunstâncias muito ponderosas e excepcionais.
Foi pois com surpresa que, através da comunicação social e de informação disponível na internet, tomei conhecimento da aprovação, pela Câmara Municipal de Évora (CME), de um protocolo em que esta, a Entidade de Turismo do Alentejo (TA) e o coleccionador Paulo Parra se propõem criar o Museu de Design de Évora, no Centro de Artes Tradicionais. Posteriormente, e porque a notícia me chocou e me preocupou como cidadão, procurei ter acesso ao texto do protocolo. Tendo-o conseguido, à minha preocupação juntou-se o meu espanto e a minha indignação. É que o protocolo pretende alterar profundamente a filosofia, o conteúdo e o espaço do actual CAT e criar, com outro âmbito, outra filosofia e outros intervenientes, uma nova estrutura dentro daquela, num hibridismo promíscuo, no qual não se vislumbra nenhuma vantagem para qualquer das duas instituições. Como o protocolo não tem uma só palavra sobre o CAT, o seu acervo, a sua gestão, a sua dependência e funcionamento, todas as hipóteses de interpretação são possíveis, mesmo a sua extinção pura e simples. Não me dispensando de, numa análise mais detalhada, apontar objectivamente aquilo que, do meu ponto de vista, são os seus erros e incongruências, deixo, por agora, tão somente, algumas notas que essa análise me mereceu.
a) Tem um enquadramento legislativo inadequado;
b) Está recheado de contradições e falta de clareza;
c) É pretencioso e mal fundamentado nos seus objectivos;
d) É confuso nos seus considerandos;
e) Carece de legitimidade institucional e ética relativamente às responsabilidades assumidas pelas instituições que o assinam;
f) São desproporcionadas as condições oferecidas face aos benefícios postos à disposição;
g) Algumas pretensões são inexequíveis no espaço físico em causa;
h) Não há qualquer informação quantificada sobre os custos de implementação e de funcionamento;
i) No texto, há referência a documentos e a dados que depois não são explicitados;
j) Há disposições constantes de cláusulas, as quais não se enquadram no seu título;
k) Há cláusulas absolutamente inaceitáveis e outras contraditórias;
l) Há aspectos regulamentares e de compromissos relacionados com a aprovação do projecto, objecto de apoio comunitário, que não foram tidos em conta.
Para finalizar, entendo deixar claro o seguinte:
- Não sou contra a instalação, em Évora, de um Museu do Design, com base numa colecção privada, reconhecida como de qualidade, nos termos de um acordo firmado por quem tenha legitimidade para o fazer e no âmbito de um protocolo equilibrado entre os direitos e obrigações das várias partes;
- Entendo que tal instalação, para a qual há, certamente, alternativas de espaço (lembro as instalações da Palmeira, onde esteve para ser instalado o MACE – Museu de Arte Contemporânea de Évora) não deverá prejudicar nem colidir com os objectivos, gestão, funcionamento e missões de protecção, salvaguarda e divulgação do património de arte popular/artesanato que são propriedade da Assembleia Distrital e que estiveram na origem da criação do CAT- ex-Museu do Artesanato de Évora;
- Acho essencial que seja feita uma avaliação interna e externa do funcionamento do CAT, desde a sua criação, com a elaboração de um relatório que proponha eventuais medidas para melhorar o cumprimento dos seus objectivos e missões;
- Julgo também importante que as entidades envolvidas clarifiquem, junto dos cidadãos, as suas posições neste assunto e que, com ponderação, bom senso e respeito pela arte popular como marca identitária da matriz cultural alentejana, suspendam a assinatura do protocolo e reavaliem o seu conteúdo.
A.J. Carmelo Aires in Diário do Sul, 17 Maio 2010
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