quinta-feira, 27 de maio de 2010

Seminário

TURISMO CULTURAL NA CIDADE DE ÉVORA – POTENCIALIDADES E DESAFIOS

Turismo Cultural e Marcas de Identidade
Foi-me grato receber o convite para vir participar neste Seminário, em boa hora organizado pelos docentes e alunos da disciplina de Planeamento de Eventos e Animação Turística. E de pronto aceitei, interessado que estava em participar nesta reflexão colectiva. Resolvi falar das marcas de identidade que nos distinguem, e que os forasteiros procuram como aquilo que nos diferencia e constitui a razão para nos visitar.
O Alentejo é um território privilegiado para o turismo de itinerância e descoberta, virado para a busca da História, da Natureza, dos sabores. O riquíssimo património da nossa Região é o nosso capital turístico que importa obviamente pôr a render, sem esquecer que não pode apenas ser usado, mas que também terá que ser mantido, recuperado, valorizado, ampliado. Ele será assim a base de uma actividade económica para os dias de hoje, mas também , sustentadamente, para o futuro. A salvaguarda e reforço deste capital constitui hoje um dos nossos maiores desafios.
O Alentejo é Património, o Alentejo é Natureza, o Alentejo é Ruralidade. É também, e sobretudo, o fruto do trabalho dos homens e mulheres que o habitaram e viveram, deixando aqui as marcas do megalitismo, do passado romano, árabe e visigótico, da idade do ouro da nossa arquitectura, do manuelino, até aos nossos dias deixando as marcas de sucessivas ocupações humanas.
Évora, capital do Alentejo, cidade histórica Património da Humanidade, foi e continua a ser a locomotiva e plataforma de distribuição do turismo regional, representando cerca de 25% das dormidas de toda a Região, perto de 300.000 no ano de 2009. Destino de importantes fluxos excursionistas, Évora ultrapassará facilmente o meio milhão de visitantes anuais. Apesar de ser o centro turístico mais cosmopolita do Alentejo, continua a predominar em Évora a procura dos turistas nacionais. E há que acarinhar o nosso mercado interno: os portugueses continuam a ser um dos povos mais ligados aos seus valores identitários, seja em manifestações tradicionais e artísticas, seja nos sabores, seja nos elementos patrimoniais.
Na oferta turística desta cidade, continuamos hoje a beneficiar também de muitas intervenções de um passado recente, que quando da sua realização dificilmente se esperaria que produzissem tais resultados.



2.

Quando em 1959 Vergílio Ferreira publicou o romance “Aparição”, quem poderia prever que hoje o roteiro implícito que ele contém seria seguido pelos estudantes do secundário, em visitas de estudo a Évora? Quando no início dos anos sessenta os membros do Grupo Pró-Évora inventariavam e protegiam elementos notáveis do património construído, quem poderia pensar que esse Centro Histórico que ajudaram a estudar, conservar e preservar hoje atrairia mais de meio milhão de visitantes por ano? A “descoberta”do Cromeleque dos Almendres , nesse mesmo período, permitiria a alguém supor que este viria a ser um dos monumentos megalíticos mais visitados da Península Ibérica ? Os primeiros concursos de gastronomia tradicional lançados pela Câmara de Évora no início dos anos oitenta, abertos a restaurantes e a particulares, dificilmente permitiriam prever que o Alentejo teria hoje a gastronomia tradicional mais bem preservada do nosso País, e constituindo o segundo motivo para visitar o Alentejo de acordo com os estudos de motivações.
É importante valorizar essas intervenções fecundas de um passado recente, e é bom assinalar outras iniciativas susceptíveis, hoje, de criar frutos nos futuros imediato e próximo. Que dizer da valorização, nos nossos espaços públicos, dos cantares populares tradicionais e dos corais eruditos, dando maior visibilidade à nossa tradição musical? Que impacto não teria a actuação mais frequente de organistas na Sé e na igreja de São Francisco, e a presença mais assídua do coral Eborae Musica nas nossas igrejas recordando a música da Escola da Sé de Évora do século XVII? E por que não o regresso do “Viva a Rua” animando as noites quentes da Praça de Giraldo com o cante e as músicas do Mundo?
Mas falar de “marcas de identidade” é falar de cultura popular, e das suas manifestações mais fortes, ligadas ao passado de um mundo rural que vai rapidamente desaparecendo. É falar do artesanato, e sobretudo daquela realidade difícil de enquadrar, que é o artesanato tradicional de qualidade.
Este é um tema particularmente oportuno quando se tem falado nos últimos dias no Museu de Arte Popular, de Lisboa, que passou os dez últimos anos fechado e que, recusando-se teimosamente a morrer reabriu simbolicamente no passado dia 18, Dia Mundial dos Museus, em resultado da acção cívica persistente de tantos cidadãos que se recusaram a aceitar o seu encerramento, ou a tolerar que no seu lugar, no seu espaço, se viesse a instalar um outro museu, por muito importante que fosse.
Em Évora, também um museu de arte popular se recusa a morrer. Criado pela Junta Distrital em 1962, foi instalado no edifício do antigo Celeiro Comum, um belo exemplar do nosso barroco. Montado com base em reconstituições de ambientes rurais, o Museu de Artesanato Regional ali funcionou, com uma procura significativa, durante perto de 30 anos, até 1991.



3.

Nesse ano, num acto de primarismo e incultura, o representante do Governo procedeu ao seu encerramento, despediu os funcionários, impediu os representantes da Assembleia Distrital de aí aceder, e ali deixou o Museu a apodrecer anos a fio. Só mais de seis anos volvidos o Museu do Artesanato, espaço e acervo, viria a ser devolvido à Assembleia Distrital, em estado de profunda degradação.
Impunha-se reabri-lo, a fim de guardar e dar a conhecer a memória das formas tradicionais, criando simultaneamente um centro de informação vivo em diálogo com os núcleos de produção artesanal espalhados pelo Distrito.
Mas já não era possível, em finais dos anos noventa, reabrir o Museu de Artesanato Regional nos termos em que fora concebido e aberto em 1962. Havia que encontrar formas de apresentação actuais, conceber novas museologia e museografia adaptadas aos nossos dias em diálogo com os interessados, artesãos, representantes do Poder Local, e técnicos da especialidade.
Este trabalho foi atentamente enquadrado por uma Comissão de Acompanhamento constituída por representantes do Instituto Português de Museus - que delegou no Director do Museu de Évora - , da Universidade de Évora, e da Comissão Interministerial para o Artesanato. O trabalho desta Comissão viria a revelar-se de grande importância para levar este trabalho a bom porto.
Houve depois que mobilizar financiamento significativo para concretizar o trabalho planeado – o edifício exigia uma dispendiosa recuperação, e as novas regras municipais exigiam a criação de facilidades inexistentes no edifício – e tal foi tornado possível no quadro do Programa para a recuperação e valorização turística do Centro Histórico de Évora, executado pela Região de Turismo e pela Câmara, com financiamento do Fundo de Turismo. Mas foi preciso muito mais financiamento, e houve que ir buscá-lo ao Programa LEADER, ao terceiro Quadro Comunitário de Apoio, e sobretudo ao Orçamento próprio da Região de Turismo de Évora.
O novo Centro de Artes Tradicionais, que veio a suceder ao antigo Museu do Artesanato Regional no edifício do Celeiro Comum, foi concebido como um centro de interpretação regional, e reabriu em finais de 2007.
Uma exposição permanente, de objectos artesanais agrupados em função da matéria prima de base, apresenta os diversos tipos de produções artesanais existentes no Distrito de Évora, desde os esgrafitos dos edifícios usados como decoração desde a ocupação árabe, passando pelas mobílias pintadas, os têxteis decorativos de Arraiolos, Redondo e Reguengos, a olaria de Viana, Reguengos e Redondo, os figurados de Estremoz, os trabalhos da arte pastoril em madeira, cortiça e corno, e tantos outros objectos representativos da actividade de cerca de 500 artesãos activos no Distrito de Évora.

4.

Uma zona central da nave do antigo Celeiro Comum é ocupada com exposições temporárias que permitem abordar de forma mais extensa a produção artesanal deste ou daquele centro produtor, ou tratar em profundidade um tema específico : no caso da exposição temporária actualmente presente, o tema é o figurado de Estremoz, tratado com base em peças dos anos sessenta pertencentes às reservas do museu.
Uma terceira zona é dedicada ao artesanato moderno, estando actualmente ocupada por uma peça de grandes dimensões do artesão Tiago Cabeça.
Há entretanto que enquadrar os objectos artesanais e a sua produção em materiais escritos, produzidos pelo Centro de Artes Tradicionais. Além do catálogo da exposição permanente, e de catálogos de algumas exposições temporárias, com destaque para a que foi dedicada a Redondo, foram editados Roteiros para diversos produtos artesanais (tapetes de Arraiolos, olaria de Corval, figurado de Estremoz, entre outros ) com a descrição da produção actual e fichas com os contactos dos artesãos produtores, edições estas para apoio directo à comercialização dos seus trabalhos.
Existe também informação audiovisual, que pode ser vista num pequeno auditório situado no final do percurso da visita, e no qual é projectado um filme de enquadramento geral do artesanato do Distrito de Évora com 20 minutos de duração e com versões em cinco idiomas. Para além deste, existem mais duas dezenas de pequenos filmes com durações entre os 2 e os 5 minutos, descrevendo os centros de produção dos diferentes objectos artesanais e o modo concreto de fabrico de cada um deles. No total, o museu dispõe de material audiovisual com um tempo de projecção total de mais de duas horas.
Finalmente, há a informação em suporte digital relativa à história do Museu, ao recenseamento dos artesãos do Distrito de Évora, aos diferentes produtos artesanais deste território, que pode ser consultada individualmente em cada um dos quatro monopostos existentes no final do percurso expositivo.
Não posso deixar de referir o espaço da loja – infelizmente encerrada há quase um ano – onde era possível adquirir peças do artesanato regional cuidadosamente seleccionadas, e que traduziam com felicidade a aposta do museu no artesanato tradicional e moderno de qualidade.
Esta segunda vida do Museu do Artesanato foi consequentemente concebida para, a partir da visita ao Centro de Artes Tradicionais, incitar o visitante a procurar nos centros de produção artesanal espalhados pelo território o aprofundamento dos contactos aqui iniciados, propondo-lhe a itinerância e a descoberta de novos pontos de interesse turístico no nosso território. É a proposta de prosseguir no hinterland de Évora o turismo cultural iniciado na cidade Património da Humanidade.

5.

Fala-se hoje em instalar um Museu de Design-Colecção Paulo Parra no edifício onde actualmente funciona o Museu do Artesanato. O que obviamente implicaria encerrar o Museu do Artesanato. Quem tal se propõe fazer – a direcção da Entidade Regional de Turismo do Alentejo, a Câmara Municipal de Évora – argumenta com os custos de funcionamento do Museu do Artesanato, e com o número de visitantes que não permitiria cobrir tais custos com as receitas das entradas.
Mas não falam em intensificar esforços promocionais, ou em criar um marketing adequado para “vender” melhor o Museu de Artesanato de Évora. Mas nem reparam na contradição em que caem quando falam, sim, em custear o futuro Museu de Design-Colecção Paulo Parra, até que este seja auto sustentável.
Entre custos com artesanato e custos com design, talvez valha a pena reflectir no que é mais útil para a identidade cultural da Região e para o nosso turismo.
Mas não me parece que devamos perder mais tempo com esta história bizarra.
O Museu do Artesanato deve continuar a dar, em Évora, o seu contributo para o turismo cultural desta cidade e para a mobilização dos forasteiros para o nosso meio rural. A colecção Paulo Parra será muito bem vinda à cidade de Évora, se não for ao preço de liquidar algum museu existente ligado à identidade e à cultura deste território : o que para aí não falta são instalações compatíveis, ao abandono, que poderão ser utilmente recuperadas para o efeito.
Gostaria, para terminar, de endereçar um desafio aos professores e alunos desta disciplina de Planeamento de Eventos e Animação Turística. Por que não encarar como exercício académico a elaboração de um plano de marketing para o nosso Museu do Artesanato? Esse trabalho deveria envolver os vários agentes interessados: artesãos, guias turísticos, hoteleiros, agentes de viagens e, claro está a Entidade Regional de Turismo do Alentejo e a Câmara Municipal, que dispõem de meios humanos empenhados e meios de divulgação importantes , que conviria neste quadro mobilizar.
Trabalhemos para salvaguardar o que é nosso, e que nunca sairá daqui: a nossa identidade e a nossa diferença.

Muito obrigado pela vossa atenção.

João Andrade Santos
Universidade de Évora - Seminário Turismo Cultural 24 Maio 2010

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